Maio amarelo, bicicleta branca

Wallace Tadeu de Moraes tinha 27 anos, um filho de sete e morava com a família na Vila Brasilândia, periferia da Zona Norte de São Paulo. Com uma bicicleta motorizada, ganhava a vida fazendo entregas. De manhã, para uma empresa terceirizada da Natura, na região da Barra Funda, região central.

À tarde e à noite, ligava o celular e atendia clientes da empresa de aplicativos. Quando possível, ele atravessava o rio Tietê e voltava para casa para comer algo e descansar um pouco antes da próxima jornada.

Naquela sexta-feira cinzenta de 27 de abril de 2023, no entanto, ele não voltou. Eram 16h16 quando foi atropelado por um caminhão Volkswagen branco de 13 toneladas, desses que carregam caçambas de entulho. A tragédia aconteceu na ciclofaixa da avenida Marques de São Vicente, no acesso à rua Francisco Luis de Souza Junior. O motorista da besta de ferro se chama Anderson Barroso de Andrade.

Em um vídeo coletado de uma câmera da vizinhança, vê-se o caminhão e a bicicleta se movendo na mesma direção. O ciclista está ligeiramente atrás do primeiro. Ao que parece, o suficiente para ser visto pelo retrovisor. Logo emparelham e o caminhão vira subitamente à direita. Vê-se Wallace saindo da ciclofaixa percebendo a súbita mudança de direção do caminhão. Tenta desviar mas acaba sendo pego pela roda dianteira direita e desaparece embaixo do veículo.

De acordo com o relato para a Polícia Civil, Wallace foi arrastado por cinco metros e morreu ali mesmo, com o crânio esmagado. Ao lado da bicicleta entortada, também ficou a bolsa térmica onde acomodava os produtos das entregas.

Exato momento em que Wallace é atropelado. Motorista diz que não o viu.

Aos policiais da Central de Flagrantes do 91º Distrito Policial do Ceasa, na Zona Oeste, Anderson disse que não viu a bicicleta.

Escreveu a escrivã de polícia: “logo após fazer a conversão para a direita e sinalizar devidamente com o pisca, sentiu algum obstáculo atingido pelo caminhão e em seguida parou para averiguar”. É o relato do motorista. Não há testemunhas, mas o relato levanta uma suspeita. A frase sinalizar devidamente com o pisca aparece depois de fazer a conversão para a direita. Ato falho? Pode ser.

Boletim de Ocorrência: pisca depois de entrar?

Como o Anderson parou e prestou socorro, não estava embriagado e a habilitação para dirigir estava em ordem, o delegado registrou a ocorrência como homicídio culposo, sem intenção de matar, e o liberou. Wallace foi enterrado no dia seguinte.

Sinistros em alta

Naquele mesmo dia, um grupo de ciclistas esteve no local para fazer um protesto. Eu estava com eles, elas e elus. A Massa Crítica é um movimento transversal e espontâneo de ciclistas que acontece em várias cidades do mundo sempre na última sexta-feira do mês para exigir segurança para quem pedala.

Em São Paulo o encontro é entre 19 e 20 horas na praça do Ciclista, na avenida Paulista. Naquela noite, eram umas 20 bicicletas. Partimos por volta das 20h30 e chegamos no local 30 minutos depois.

Massa Crítica protesta no local na mesma noite

O local onde Wallace morreu é problemático, ainda que a ciclofaixa seja bem sinalizada no solo. Muitos veículos convergem para a rua e ainda há um posto de gasolina e gás veicular na esquina, o que forma filas de carros em cima da ciclofaixa.

Um dos frentistas é parente do Wallace. Está triste e abalado, e surpreso com a chegada do grupo de ativistas que ocupam parte da rua e passam a pintar no solo frases de protesto. Ele faz um discurso de agradecimento, as pessoas batem palmas e gritam “Wallace presente”. Marcelo ri encabulado.

Mesmo depois das 9 da noite, o fluxo de carros que entra na rua Francisco Luiz vindos da avenida Marques de São Vicente é alto. A movimento inverso também é intenso, assim como a frequência de ciclistas utilizando a ciclofaixa. A maioria deles tem uma caixa de entrega nas costas. Atendem os pedidos de moradores dos conjuntos residenciais de classe média que foram construídos por ali nos últimos anos. Alguém diz que até aquele prefeito que morreu, o Bruno Covas, morava por ali.

Aquela esquina é um exemplo do que não é o Visão Zero, esse conceito nórdico adotado pela Organização Mundial da Saúde de que o trânsito não deveria matar ninguém e, se mata, a culpa é inclusive de quem o projeta e o administra.

Aqui em São Paulo, no entanto, os profissionais gestores do trânsito dizem que trabalham para alcançar a Visão Zero, mas acredito que o que acontece mesmo é a Zero Visão. Ninguém na administração municipal assume culpa de nada. É sempre o comportamento dos usuários. Para completar, a cidade retirou a meta de redução de mortes do Plano de Metas.

Tabulei os dados do Infosiga comparando a quantidade de sinistros não-fatais envolvendo bicicletas nos quatro primeiros meses de 2023 com o mesmo período de 2022. Alta de 5%, para 653 ocorrências. São mais de cinco sinistros por dia. Só com bicicletas.

E quem mais se envolve em sinistros com ciclistas são os motociclistas. Fiz esse gráfico com os dados de 2022.

O local onde Wallace morreu mereceria um acalmamento de trânsito, um urbanismo tático que possa impor aos carros menores velocidades mais baixas. Percebo que os veículos entram na rua mais velozes do que a prudência exige, considerando a circulação de bicicletas e a faixa de pedestres.

O memorial da Bicleta Branca

Uma semana depois, os ciclistas voltaram ao local para instalar uma bicicleta branca. Esses ativistas sempre que podem fazem isso para não deixar de lembrar que em uma bicicleta vai uma vida.

A noite paulistana no outono é fria, mas os familiares do Wallace compareceram ao ritual. Eu não fui, mas acompanhei pelos vídeos dos colegas. Já participei de outros eventos semelhantes. Enquanto uns ciclistas desviam o trânsito, outros pintam uma bicicleta velha de branco, outros sobem no poste e a prendem, outros escrevem frases de protesto no no asfalto, colam flores e cartazes nos postes e muros.

Depois de prender a bicicleta, é comum fazerem uma roda e alguém puxa uma oração ou começa um discurso pedindo paz no trânsito e justiça para a vítima. Em dado momento, grita-se “Wallace presente”. Pessoas se abraçam, choram e depois cada um pega seu destino.

 A bicicleta fica ali pendurada no meio da avenida ou no poste de luz, como aquelas cruzes que são colocadas nas bordas de rodovias. É um memorial para as pessoas que ali morreram.  

Até aquele dia, Wallace foi o décimo ciclista vítima do trânsito paulistano em 2023, segundo o Infosiga.

O Maio Amarelo

O Maio Amarelo é um movimento criado por uma ONG brasileira chamada Observatório Nacional da Segurança Viária e tem sido eficaz em promover eventos de conscientização sobre o assunto junto à diversas prefeituras e estados brasileiros.

Aqui em São Paulo, a Secretaria de Mobilidade costuma aderir. Eu já participei de reuniões com o marketing da Companhia de Engenharia de Tráfego (CET), que é a empresa municipal que fiscaliza o trânsito, mas o empenho é bem pequeno considerando as dimensões da cidade. Alegam que não dá para fazer muito, pois não têm verba. Acabam dependendo de parcerias para fazer ações, tais como palestras educativas e eventos técnicos.

O único dinheiro que a cidade gasta de fato nesse Maio Amarelo é com algum marketing. Mas é muito pouco. Espalham cartazes pelas ruas pedindo para motoristas, motociclistas, pedestres e ciclistas que respeitem uns aos outros e a sinalização.  O que realmente é necessário, que é fiscalização e multas para infratores, fica aquém do necessário. O maior escárnio disso tudo é o desconto de 40% que a o Detrans-SP vai conceder no valor de multas de trânsito lavradas a partir de 1º de junho como forma de incentivarem a adesão a um sistema digital.

Já a CET, que deveria fiscalizar o trânsito na cidade, está com falta de pessoal. Em 2022, promoveu um programa de demissão voluntária e 370 profissionais deixaram a empresa. Recentemente, o agora ex-secretário de Mobilidade da Capital, Ricardo Teixeira, afirmou em reunião do Conselho de Municipal de Trânsito que o prefeito Ricardo Nunes havia liberado a realização de concurso para contratar 200 profissionais, mas não se ouviu falar mais nisso.

Cotidiano cruel

As ações do Maio Amarelo, todavia, não foram suficientes para que o entregador Abimael Mateus, de 30 anos, tivesse o direito de pedalar em segurança respeitado. Na manhã de uma terça-feira, 16 de maio, ele descia pelo que restava da ciclofaixa da avenida dr. Cândido Motta Filho, no Rio Pequeno, Zona Oeste de São Paulo, quando um carro o abalroou por trás.

Ele foi jogado ao chão e sofreu algumas escoriações. No vídeo que circulou pelas redes sociais, vê-se o entregador no chão e a bicicleta com a roda entortada. Já o motorista, fugiu.

Encontrei Abimael no sábado seguinte no local onde ele bateu com a mão no carro do infrator e depois onde foi derrubado.

No primeiro trecho dessa estrutura, há um canteiro central que separa as pistas. As ciclofaixas são unidirecionais e acompanham cada sentido da avenida. Foi no cruzamento com a rua Marechal Olímpio Mourão Filho que aconteceu o primeiro encontro do ciclista como o motorista.

O carro vinha dessa rua e tentava entrar à esquerda na outra pista. Diariamente o trânsito ali é caótico e costumeiramente os motoristas fecham o cruzamento.

No ato de desviar, Abimael encostou com a mão no carro, um SUV Branco da Toyota, e continuou a na ciclofaixa, seguindo caminho para o trecho em que as ciclofaixas se unem no lado direito da e se tornam uma só, bidirecional.

Abimael foi derrubado por trás, nesse trecho. “Ele fez isso na covardia. Eu já estava parando, pois a ciclofaixa estava cheia de carros”, explica.

Enquanto conversamos, aparece um rapaz perguntando se ele está bem. “Ele parou no dia para me ajudar. Muito obrigado”,  agradeceu Abimael.

Ele explica que trabalha muito para manter as contas. Durante o dia, faz entregas para a cooperativa Giro Sustentável, que tem sede em Pinheiros, distante cerca de 12 quilômetros de onde mora, no Jardim D’Abril, em Osasco. A depender do cliente, pode pedalar mais 5 ou 50 quilômetros por dia.

Para incrementar a renda, em algumas noites ele vai atender o restaurante palestino, Al Janiah, que fica no Bexiga. Também produz artesanatos. Diz que diariamente vive conflitos semelhantes no trânsito. “Noventa por cento dos motoristas são agressivos, muito estressado e apressados”, ressalta.

Não é a primeira vez que é derrubado. “Em novembro passado um cara me atropelou, na mesma maldade. Fui perguntar por que ele me fechou, que ia chamar a polícia, ele simplesmente olhou para mim e tentou me atropelar”, desabafa.


Uma parte da culpa é da administração municipal. Há pedidos para sinalizar a ciclofaixa datados de menos 3 anos atrás.

Ao mesmo tempo em que conversamos, trabalhadores contratados pela Prefeitura estão refazendo a sinalização daquela ciclofaixa.  “Aconteceu um acidente e a prefeitura mandou a gente aqui com pressa”, me confessa um deles.

Para minimizar o risco, moradores da região que usam a estrutura pintaram faixas e desenharam bicicletas para manter alguma evidência de que por ali o tráfego é segregado para bicicletas.

Sinalização de emergência na ciclofaixa avenida dr. Cândido Motta Filho – Crédito Rogério Viduedo – 20/05/2023

Não fosse a ocorrência com o Abimael, essa estrutura iria continuar apagada, pois a concorrência que a prefeitura promove para contratar a empresa que vai fazer as manutenções cicloviárias está aguardando a fase de recursos. Essa licitação, entre congelamentos e refazimentos, já tem mais de três anos.

Há pelo menos 35 quilômetros de ciclofaixas e ciclovias de São Paulo que oferecem risco para vida de ciclistas que pedalam nelas, segundo um relatório produzido pela Associação de Ciclistas de São Paulo e publicado em novembro de 2022.

A Secretaria de Mobilidade diz que São Paulo tem 699 quilômetros de ciclovias e ciclofaixas disponíveis na cidade, mas o cicloativista George Queiroz, que mantém o canal @BicicleteirosBr, mostrou que dezenas de estruturas sumiram nos últimos anos.

O governo contestou, mas o fato é que a maior cidade do país não consegue dar segurança para quem pedala.


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