Elissa Mattos: A bicicleta como corpo político e território de libertação

Adriana Marmo

“Eu comecei a pedalar cedo, mas sempre em lugares protegidos. Só depois dos 45 anos, quando comecei a namorar alguém que usava a bicicleta para tudo, percebi o que era pedalar na rua. Foi um choque. Não era mais o mesmo pedalar. Era um outro mundo”, conta.

Elissa morava em São Paulo quando decidiu trocar o carro pela bicicleta. “A bateria do carro arriou três vezes, eu pagava estacionamento… Vendi o carro e passei a usar a bicicleta como meu único veículo.” A decisão, que poderia parecer apenas prática, logo se revelou política. “Subir na bicicleta e deixar o filho com quem? Essa é uma pergunta que nunca foi feita aos homens. As mulheres não vivem para si mesmas — vivem para os outros.”

Aos poucos, a pesquisadora percebeu que pedalar era também enxergar — e sentir — o outro. “Comecei a ver quem realmente está nas ruas. Gente que não escolheu pedalar, mas que depende da bicicleta para sobreviver. Vi mulheres indo trabalhar, homens levando os filhos para a escola, idosos empurrando bicicletas carregadas de ferramentas. Eu pude escolher. Eles, não.”

Foi nessa diferença entre o privilégio e a necessidade que nasceu seu engajamento. “O cicloativismo começou quando eu pulei da calçada. Quando enxerguei o outro. Não foi pela saúde, nem pelo meio ambiente. Foi por perceber vidas invisíveis, corpos vulneráveis. Gente que eu não via quando dirigia um carro.”

Hoje, aos 53 anos, Elissa é mestranda em Geografia pela Universidade Estadual de Goiás e transforma sua trajetória em pesquisa acadêmica. O tema: a bicicleta como instrumento de resistência e dignidade. “Meu orientador sugeriu que eu escrevesse sobre a minha vivência. E foi aí que entendi que a autoetnografia me permitiria falar sobre mim, mas também sobre essas outras pessoas. Porque o que eu estudo não é ciclismo. É gente que pedala para viver.”

Ela conta que sua escrita tem sido uma afronta ao academicismo tradicional. “Não quero questionários. Quero escuta, subjetividade, fotografias, cartas. Quero mostrar que o sujeito da bicicleta é diverso, e que há uma dignidade enorme em estar sobre duas rodas, mesmo quando a sociedade insiste em dizer que não.”

Nas ruas de Goiás, onde o relevo irregular e o calor castigam, pedalar ainda é um ato de coragem. “As pessoas me perguntam: não é quente demais? Você não chega suada? Mas quem pega ônibus lotado também não tem escolha. A diferença é que a bicicleta revela tudo — o corpo, a cidade, a desigualdade.”

Elissa fala sobre as ciclovias que ainda engatinham, sobre o desrespeito dos motoristas e sobre a violência do agro que molda o território em que vive. “Em Goiás, o risco é muito maior. Caminhonetes estacionam em cima da calçada, furam sinal, são brutas, ignorantes. A desigualdade é visível na mobilidade. É caminhonete de um lado e bicicleta do outro.”

A pesquisadora entende o pedal feminino como uma revolução cotidiana. “Para uma mulher, pedalar cinco quilômetros já é um ato político. Porque é sair de casa, deixar a louça suja, o filho com alguém, e se colocar no centro da própria história. É uma viagem sem volta.”

Filha de uma professora maranhense, neta de costureira e de origem preta — ainda que física e esteticamente lida como uma mulher branca, cresceu entendendo o peso dos privilégios. “Minha mãe apanhou para estudar. Eu tive acesso a escolas caras. E percebi cedo que, para mim, as coisas davam certo com menos esforço. Isso me faz pensar: o que posso fazer com isso? O cicloativismo, para mim, vem desse lugar. Do incômodo, da responsabilidade.”

Foto: Doug Oliveira Leforte


A entrevista ocorreu no mês de Setembro/2024 durante os eventos FMB e o Bicicultura em Brasília/DF.



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1 comentário

  1. Minha bicicleta se tornou corpo de meu corpo, criamos uma unidade, cumplicidade, identidade e intimidade únicas…meus braços, minhas pernas se expandem, meus pensamentos observam e se silenciam diante do mundo que sou eu, em meu coração visito cada coisa, pouso meu olhar, comungo, silêncio…assim sempre seguindo.deslizando no tapete do Universo…

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