A cobertura da mídia sobre o aumento dos casos de mortes de trânsito na Cidade de São Paulo em 2023 fez o esperado de quem ainda trata o assunto superficialmente. Sem humanizar a mortalidade e nem oferecer alguma solução que possa acabar com o problema, tanto a reportagem da Folha de S.Paulo quanto a do G1 produziram um jornalismo padrão usando os dados disponíveis no Infosiga sem se aprofundar no assunto e cometendo alguns erros.
Na Folha, a reportagem Cidade de SP teve 830 mortes no trânsito até novembro, maior número em 7 anos, por exemplo, deixou de lado 52 mortes.
Deve-se ao fato de terem selecionado o filtro “Até 30 dias” na planilha de óbitos do Infosiga. Com isso, eliminou esse contingente do total de 882 óbitos registrados em 2023.
Essas pessoas lotariam um ônibus de viagem interestadual, mas ficaram de fora da contagem, pois o intervalo entre o sinistro (acidente) que as feriu e a data do óbito foi de 31 dias ou mais. É uma questão de metodologia que dispensa da conta os óbitos com intervalos maiores.
É ruim no caso de São Paulo, pois pode ser usada como justificativa de administradores para se eximirem de assumir culpa pelo problema.

O filtro deixou de fora, por exemplo, o registro da morte de um homem de 72 anos, vítima de atropelamento por um ônibus na rua Cotoxó, na manhã de 26 de maio de 2023. Ele morreu no estabelecimento de saúde em 25 de junho, 31 dias depois. Por um dia, ficou de fora da estatística usada pela Folha, só que os atropelamentos por ônibus são cada vez mais recorrentes e não se pode desprezar esse sofrimento de quem fica 30 dias lutando pela vida em um hospital depois de ter uma perna destruída ou sofrido um choque mortal.
As matérias sobre segurança viária precisam ser humanizadas. Não há empatia quando não há rostos ou histórias de gente.
Um outro ponto de atenção na reportagem do Tulio Kruse é a menção à meta da redução do índice de mortalidade viária da Cidade. Ele diz que a prefeitura precisa diminuir de 6,5 para 4,5 mortes por 100 mil habitantes até o final de 2024 mas essa determinação já foi abandonada por essa administração abril deste ano.
O prefeito Ricardo Nunes retirou esse indicativo do Plano de Metas e transformou as metas de segurança viária em obrigações mais flexíveis, sem vínculos ao número de mortes. São nove projetos, ultra localizados, que representam uma gota no oceano que é a Cidade, tal como 3 rotas escolares seguras, três travessias para PCDs e três áreas de acalmamento de trânsito.
É comum entre administradores públicos adotarem atitudes como essa. Normalizam o aumento da mortalidade e retiram metas assumidas em governos anteriores, mesmo tendo poder para resolver o problema. A evasiva, no entanto, não vai eliminar dessa gestão a marca de ver o indicador de mortalidade viária subindo de 6,5 para 8 mortes por 100 mil habitantes, pois está claro que a cidade vai fechar 2023 com total acima de 1 mil mortes, algo que não acontecia desde 2015.
Já o G1, que reproduziu reportagem de Lucas Josino da TV Globo, usou o total de 882 óbitos, publicou bons gráficos, gerou boa contextualização com as Faixas Azuis, destacou aumento na porcentagem de casos com pedestres, mas escolheu uma fonte com opiniões baseadas em especulações.
Ao falar do aumento na morte de motociclistas, o repórter da Globo encampa um achismo do especialista Luiz Vicente Figueira: “acredita que o aumento no número de entregas por aplicativo pode estar relacionado ao registro recorde”.
Figueira, utiliza os argumentos-padrão de quem analisa o trânsito de São Paulo nas últimas décadas. A primeira delas é culpar a vítima, nunca o sistema. E vai além na especulação.
“Quando você tem um aquecimento da economia, você tem uma circulação maior de pedestres, motociclistas, motoristas. Todos no mesmo contexto, nas mesmas vias. E o risco de conflito e de acidente acaba aumentando em função desta circulação [maior].
Aumento de atividade econômica não pode ser usado para justificar óbitos de trânsito. O que gera o óbito de trânsito é um sistema inseguro, no qual usuários são levados a cometerem erros. O Metrô, por exemplo, é um sistema seguro. Uma composição de vagões entrega a mesma segurança para uma ou 2 mil pessoas. Pois assim foi desenhado.
A Organização Mundial da Saúde indica a adoção de sistemas seguros para atacar as mortes de trânsito. A base é o conceito de Visão Zero da Suécia, um país que colocou na constituição que nenhuma morte de trânsito é aceitável e que a responsabilidade principal das lesões e mortes recai nos legisladores e administradores das vias. Eles devem criar ambientes de locomoção nos quais as pessoas não morram por cometer erros. Exatamente o inverso de São Paulo
E isso envolve reduzir velocidade, aumentar calçadas e ciclovias para proteger pedestres e ciclistas, punir quem dirige bêbado, punir quem não usa cinto de segurança e cadeira especial para transportar crianças, fiscalizar condições dos carros, educar as pessoas, ter melhor resposta para ocorrências e modernizar a legislação.
Já a reportagem da Folha pediu a opinião ao engenheiro Horácio Augusto Figueira que também não fugiu do achismo ainda que tenha percebido que mais da metade dos óbitos de motocicletas (218 casos) aconteceram nas madrugadas e nos finais de semana. Ele especula que isso ocorre pelo fato de ter menos polícia para fiscalizar.
Sobre a Faixa Azul, alega que a cidade está implantando, uma aberração. “Essa infeliz da Faixa Azul só está incentivando o comportamento de que a moto, na visão da Prefeitura, é um veículo de emergência”.
A cobertura de segurança viária nas mídias tradicionais ainda é tratada como um tema de cidades, e deveria estar mais nas editorias de economia e saúde pública. Estudo do IPEA calculou que o povo brasileiro perde R$ 50 bilhões por ano com acidentes de trânsito, somados os custos hospitalares aos da perda de produtividade.
Por isso, sempre recomento a colegas jornalistas lerem meu artigo sobre fontes e ferramentas para cobertura de segurança viária, para entender melhor como tratar o assunto com a dignidade que as pessoas que fazem parte dele, merecem, ouvindo fontes que tragam mais evidências ao debate.
Foto de abertura: Motociclista manipula celular na avenida Faria Lima – Rogério Viduedo – 30 de maio de 2023
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