Nesta sexta-feira, 22 de setembro celebra-se o Dia Mundial sem Carro. Deveria ser o dia mundial sem veículos para fazer mais sentido. Todo mundo vai falar das descarbonizações, do aquecimento global, o que é correto.
Mas eu fui pesquisar o Infosiga, sistema do governo paulista que armazena sinistros de trânsito. Manipular esses dados provoca uma tristeza infinita. Não consigo só tabular os dados. Sempre acabo indo mais no detalhe, como pesquisar o local e as condições desses óbitos.
Meu foco sempre é a cidade de São Paulo. Comecei por agosto, o último mês disponível. Quatro ciclistas morreram na Paulicéia, um recorde para esse mês. O anterior? Foi de três, em agosto de 2021.
No acumulado do ano, já morreram 18 ciclistas. Imagina ter que colocar 18 colegas meus que usam a bicicleta nessa estatística. Lá no planejamento da cia. engenharia de tráfego, os chefes não usam a bicicleta. Já ouvi uma vez, de um agente de trânsito, que bicicleta não paga IPVA, por isso não têm direito a nada. Isso é comum entre desinformados. A cultura do automóvel é muito forte.
“Você conhece alguém que já morreu atropelado?” Com certeza. Por causa deles, me tornei um jornalista ativista da segurança viária. Um deles foi o Wallace, que padeceu debaixo de um caminhão na ciclofaixa da avenida Marques de São Vicente no meio do ano.
Vejam; um ciclista morreu em cima de uma ciclofaixa! Guardada as proporções, é como uma criança morrer dentro de casa vítima de uma bala “perdida”. Está tudo errado! Onde deveria haver segurança, não tem.
No depoimento ao delegado de polícia, o motorista do caminhão que o matou, disse que não viu o ciclista. Mas a gente sabe como dirigem esses caçambeiros. Eu comparo esses motoristas de caminhões de caçamba de entulho comparo aos azes da motocicleta. Se intitulam profissionais mas agem como “pilotos de corrida” e tocam o terror para entregar uma pizza ou cumprir a meta das caçambas.
Eu estive no local desses sinistro em um grupo da Massa Crítica, na mesma noite em que ocorreu a tragédia. Uma manifestação aconteceu uma semana depois para colocar uma bicicleta branca com a participação da família. Um desolação que ninguém gostaria de passar.
Queria perguntar ao prefeito Ricardo Nunes e aos seus comandados da CET como se sentiriam se o filho deles morresse assim. Vão desconversar. Dirão que a culpa é de quem não obedece as leis de trânsito e que a meta deles é Visão Zero, a mesma cantilena usual.
Um motoca por dia morre em SP
Se pegarmos os números de todo os meios de transporte, a cidade já acumula, de janeiro a agosto de 2023, uma tragédia equivalente à lotação de 10 ônibus de turismo ou de três Boeing 737-700 da Gol, que leva 138 passageiros.
Pois é. Foram 488 óbitos de trânsito nas vias administradas pela Prefeitura de São Paulo. Os motociclistas, desde 2020, lideram esse féretro e respondem por 44,2% do total, com 216 óbitos. Só em agosto, foram 26! Quase 1 por dia.
Frontal com o ônibus
Como não consigo ficar na frieza dos números, surgiu um dado curioso na planilha de Excel. Em 17 de abril, há o registro de uma ocorrência com três ocupantes de moto, de jovens entre 18 e 24 anos. O fato aconteceu às 5 horas da manhã na avenida do Campo Limpo.
Busquei na internet. Um rapaz conduzia a moto em alta velocidade com duas meninas na garupa, diz o Diário do Transporte. Bateram de frente com um ônibus que estava parado na direção contrária. O condutor da moto, sim, usava capacete. De que importa? Morreu assim mesmo.
Fico imaginando a cena: o rapaz acelerando até o fim, com a munheca direita torcida para trás. O corpo, levemente curvado para a frente, típico de quem procura maior aerodinâmica. As meninas se espremendo atrás dele, agarrando-se em quem está na frente, cabeça de lado nas costas da colega.
“Morreu à milhão na avenida”, diria algum amigo, relembrando a perda do colega do ensino médio.
Mercado aquecido
Nunca se vendeu tanta moto no Brasil. Foram 164 mil unidades só em agosto, um recorde para o mês segundo a contagem da Abraciclo. Os modelos “street”, dessas que a gente mais vê nas ruas, representam 50% da produção nacional e são mais de 80% das vendas da líder, Honda.
Essa alta nas vendas de motos não é só por causa das entregas. Em cidades menores, elas são o objeto do consumo da classe C. É a independência na mobilidade para quem antes dependia de animais ou de transporte coletivo ineficiente e a região Nordeste tem sido responsável por boa parte dessas vendas.
Dois meses atrás, eu estava na Conferência Visão Zero em Estocolmo e os especialistas mundiais e membros da Organização Mundial da Saúde abordaram o assunto em um dos painéis. Já foi identificada uma crise nos países em desenvolvimento, já que o uso delas na Europa e Estados Unidos é limitado.
Havia até um representante da Honda apresentando uma ideia que eles têm de criar uma inteligência artificial que evitaria as mortes nas motos a partir da antecipação comportamental. Coisa para daqui uns 30 anos. Diria um amigo: “é o típico greenwashing”. Não contesto.
O drama paulistano é vivido em maior intensidade em países da África, na Índia e no Sudeste Asiático, como Indonésia, Malásia e Vietnã, onde as motocas imperam e também são responsáveis pelo grosso das mortes de trânsito. Tem lugar que nem capacete usam. Quem já não viu na internet vídeos de gente usando a moto para transportar mais de cinco pessoas, ou animais e até geladeiras?
Pedestres na segunda posição
A segunda colocação na estatística da capital é ocupada por pedestres. É outro desalento. Foram registrados 24 óbitos em agosto. Na maioria das vezes, são atropelamento de alguém que foi cruzar a avenida. No acumulado do ano, foram 167 caminhantes que perderam a vida. Alguns até em cima de calçadas.
Eu não quis fazer muita comparação, pois não importa se caiu ou aumentou 5%, 10% de um ano para o outro. Ninguém deveria morrer dessa maneira. É totalmente evitável.
Quem perdeu o parente debaixo do pneu de um ônibus não liga para estatística. Ela quer justiça; quer fazer a dor parar. Mas, quem administra as ruas da cidade frequentemente dirá que está seguindo as regras e aplicando os conceitos mais modernos. Não está. Reduzir mortes de trânsito exige coragem, coisa que nossos governantes, em geral, não têm.
O único que teve essa coragem aqui em SP foi o Fernando Haddad. Reduziu velocidades e foi massacrado pelo mídia, que o acusava de contribuir para a indústria da multa. Falácias.
Todos os especialistas de trânsito conhecem as ferramentas para acabar com mortes: aumentar fiscalização, diminuir velocidades, segregar vias de ciclistas, desestimular uso de carro e motos, melhorar transporte público, iluminar e aumentar calçadas. Um sistema seguro precisa prever o erro do usuário.
Outra estatística desalentadora que achei neste ano de 2023. Ninguém morreu dentro de um ônibus! Mas, por causa dele, foram 38 pedestres, três ciclistas e 21 motociclistas. Tal qual o trio de amigos do Campo Limpo.
Enquanto não passarmos a responsabilizar o prefeito, administradores e planejadores urbanos pelas mortes que acontecem na cidade, a Visão Zero aqui no Brasil e, sobretudo em São Paulo, não passará de um conceito distante a ser seguido e nenhuma celebração do Dia Mundial sem Carro vai ajudar a acabar com a epidemia de mortes do trânsito.
Foto de abertura – Ciclista desvia de carros estacionado em ciclofaixa na avenida Otacílio Tomanik, no Rio Pequeno, zona oeste da capital paulista.
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