Por Anna Coirolo, estudante de jornalismo e cicloativista de Blumenau (SC)
Três de setembro de 2024 foi um dia histórico. As manchetes dos jornais de todo o país relatavam: “Umidade atmosférica de Brasília está a 7%, nível menor que o do Deserto do Saara.” A capital brasileira e todo o Planalto Central passam por uma das maiores secas que se conhece, com a marca de 157 dias sem uma gota de chuva.
Em meio a isso, dirigiram-se para a cidade mais de 200 cicloativistas que participaram der dois eventos simultâneos sobre bicicleta: o 13º Fórum Mundial da Bicicleta e o 11º Encontro Brasileiro de Mobilidade por Bicicleta e Cicloativismo, o Bicicultura. A sede local foi na Universidade de Brasília (UnB), de 4 a 8 de setembro.
Impossível não lembrar, em meio a tamanha seca, da gíria “camelo”, usada pelo Renato Russo da banda Legião Urbana, na música “Eduardo e Mônica” para se referir à bicicleta. Aliás, estar em Brasília e não lembrar do compositor de clássicos do rock nacional é quase impossível. Nessa letra, ele descreve o encontro entre um jovem adulto, para não dizer adolescente, com uma estudante de medicina, um pouco mais velha que ele: “Se encontram então no Parque da Cidade / A Mônica de moto e o Eduardo de camelo.”
Assim como os amores improváveis que se locomovem pela cidade em busca de um outro, seja de moto ou de “camelo”, as bicicletas estão por aí, circulando. Tem quem gosta, quem ache que atrapalha o trânsito, e quem odeie a ponto de dizer, “queria mesmo era passar por cima!”.
Os dados deixam claro que a situação não é boa, pois pedalar é um ato de coragem no Brasil. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), somos o terceiro país do mundo que mais mata no trânsito. A ONG brasiliense Rodas da Paz estima que, nos últimos 10 anos, cerca de 13 mil ciclistas foram mortos no trânsito brasileiro.
Um deles foi o cicloativista Raul Aragão.
Mãe cicloativista em memória do filho
Renata Aragão, uma mulher com mais de 60 anos, nasceu em Recife, mas passou boa parte de sua vida em Brasília. Sua relação com a bicicleta começou na infância, brincando dentro do condomínio onde morava. O medo da violência no trânsito de Recife impedia que ela se aventurasse de bicicleta pelas ruas. Medo da morte.

Mãe de dois filhos, Flora e Raul, Renata traz essas histórias de vida que nos despertam sentimentos que não sabíamos que existiam. Uma força de mãe.
Raul era um jovem cicloativista, conhecido por sua capacidade de estar presente em diversos grupos relacionados à bicicleta, seja para o cicloativismo, diversão ou esporte. Babi Barbosa, cicloativista recifense coordenadora da AmeCiclo (ONG de Recife), diz que seu amigo Raul a fez entender que era preciso união no mundo da bicicleta. “Ele era o único ciclista que participava de vários movimentos, como Bike Anjo, Massa Crítica, Bikepolo, Rodas da Paz, entre Recife e Brasília”, recorda.
Carismático e determinado, a alegria de Raul deixou sua marca em muitos espaços e na vida das pessoas ao seu redor. Estudante de sociologia na UnB, ele tinha uma conexão especial com a bicicleta. No sábado, dia 21 de outubro de 2017, decidiu ir almoçar no restaurante da universidade para, em seguida, ir à casa do pai.
O telefone de Renata toca.
O mundo para.
Silêncio.
Raul havia sido atropelado em frente à UnB por um veículo que trafegava a 95 quilômetros por hora em uma pista com limite de 60. Ele resistiu até a madrugada de domingo… se foi. O choque da perda devastou a mãe, agora órfã de seu filho amado.
Ela transformou o luto em luta. Decidiu continuar a fazer o que fazia o filho feliz. “Ressignifiquei a morte dele em algo para não ser esquecido”, explica. E passou a ocupar o lugar de Raul na Rodas da Paz, uma organização dedicada à promoção da mobilidade ativa e dos direitos dos ciclistas.
Hoje, a mãe de Raul atua como coordenadora financeira da ONG. Ela tem se dedicado a projetos que envolvem tanto a conscientização sobre o uso da bicicleta quanto o fortalecimento da infraestrutura cicloviária em Brasília. Sempre em busca de políticas públicas que favoreçam os ciclistas. Com o tempo, Renata se tornou uma das principais vozes do cicloativismo na capital federal e no Brasil.
Uma de suas maiores conquistas foi a organização do Fórum Mundial da Bicicleta e do Bicicultura 2024, eventos realizados juntos pela primeira vez na cidade, celebrando a bicicleta como meio de transporte, símbolo de sustentabilidade, união e resistência. “Queria encher Brasília de bicicletas, nem que fosse durante o evento”, afirma, revelando o sonho que herdou do filho.
Com orgulho de mãe, relembra como o filho incentivava os calouros da UnB a adotarem a bicicleta. “Ele reunia várias bicicletas com a ajuda dos amigos, ia até a rodoviária buscar os alunos no primeiro dia de aula e trazia todos pedalando até a universidade”, conta. Esse era o objetivo dele: promover o uso da bicicleta de todas as maneiras possíveis.

Incentivadora de projetos que envolvem o uso da bicicleta, como o Bike Anjo e o Doe Bicicleta, ela vê na mobilidade ativa em duas rodas não apenas uma solução para as cidades, mas uma maneira de homenagear o legado de Raul e garantir que outras mães não precisem enfrentar a dor que ela aconteceu.
“A bicicleta para mim é pedalar suave. Quero que seja suave para mim e para quem a escolhe como uma forma de viver”, finaliza. Para ela, a bicicleta é um legado.
A luta de Renata é para que outras mães não precisem passar pelo que ela passou. Isso é um lembrete poderoso: por trás de cada bicicleta há uma história, e cada pedalada pode mudar o rumo de uma vida ou de uma cidade.
Que os “camelos” invadam Brasília e tragam consigo um futuro mais sustentável e humano.
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Excelente! Parabéns, Renata! Sua força faz Raul sempre presente!
Um mundo mais leve e seguro para todos!
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