Solidariedade e empatia: onde o ciclista entregador de aplicativo encontra força para suportar o trabalho

Nesta terceira entrevista da série Direito dos Entrega, conversamos com o pesquisador em mobilidade do Cebrap e doutor em Educação Física pela Universidade de São Paulo, Eduardo Rumenig Souza. No ano passado, ele publicou a tese: Rebocadores Urbanos e o Capitalismo de Plataforma – Um ensaio sobre a Entrega por Bicicletas em São Paulo.

Todo mundo que trabalha com logística urbana, recursos humanos, direito trabalhista e políticas públicas precisa ler. Nela, Rumenig inclui o resultado da pesquisa etnográfica que ele realizou junto a trabalhadores que fazem entrega de mercadorias usando a bicicleta nos bairros do Centro e região da Avenida Paulista.

Ele acompanhou durante seis meses a rotina de trabalhadores que pegam serviço pelo aplicativo de celular do tipo Ifood e Rappi,  tanto os que fazem o horário que querem (concedido como nuvem) quanto os que trabalham para uma empresa intermediaria contratada pelos aplicativos para manter uma força de trabalho constantemente à disposição.

O professor também participou do dia a dia de empregados contratados via CLT bem como aqueles afiliados à cooperativas e seu objetivo era saber se os benefícios de quem pedala, tais como melhor saúde, são maiores do que os problemas enfrentados por ciclistas entregadores, como poluição, problemas ergonômicos, alimentação irregular, etc.

A entrevista em vídeo, pode ser vista a seguir.

Rogério Viduedo: Como um trabalhador por aplicativos pode transformar as pedaladas diárias em benefícios?

Eduardo Rumenig Souza – Na verdade, foi um pouco a pergunta que orientou a tese, porque a maior parte dos estudos que são publicados sinalizam que andar de bicicleta é benéfico para a saúde , que traz benefícios para a cidade, para o ciclista, para as pessoas que não usam a bicicleta, que recebem os benefícios indiretos né? Porque é o veículo que não tem nenhuma emissão, ou tem baixa emissão, dependendo do poluente que você considera. E estimula a prática de atividade física, aeróbia, enfim. E muda a sua forma de circular pelo espaço, de perceber a cidade.

O problema é que, inserido numa lógica capitalista, é possível, ou era possívelque foi o que a gente tentou investigar, que esses benefícios pudessem ser mitigados tanto pelas condições do espaço, por onde ciclista percorre, quanto pela forma como ele usa a bicicleta, inserida dentro de uma lógica mais produtivista e neoliberal, que foi como a gente chamou.  E daí o que a gente concluiu aqui, é que olhando da perspectiva da qualidade de vida, talvez o uso da bicicleta como instrumento de trabalho dentro desse contexto, considerando a realidade de São Paulo e considerando a realidade do trabalho de plataforma, pode ser comprometida.

Então, talvez esse benefício não venha com a prática ou com o uso da bicicleta diário inserido dentro dessa lógica neoliberal. E dentro do contexto urbano como o de São Paulo. O ponto é que eu acompanhei esses ciclistas em um período muito específico, que foi logo no início pandemia de Covid-2019, e tinha restrição de circulação de veículos e de pessoas e em tese a poluição emitida pelos veículos automotores estava menor, embora a poluição advinda das queimadas da Amazônia e do Pantanal acabaram aumentando os níveis de poluentes. É difícil responder essa pergunta.

Para transformar a pedalada em benefício precisaria de um conjunto de fatores. O poder público melhorando o espaço urbano;

as plataformas mudando um pouco a lógica de como elas funcionam; o mercado de trabalho garantindo que o trabalhador, a partir da atividade que ele desenvolve, como parceiro, que é como as plataformas os chamam, as atividades que desenvolvem tenham condições de suprir as necessidades humanas mínimas, ou básicas melhor dizendo. E o próprio ciclista tendo mais, eu vou chamar de cultura corporal assim, para tentar adequar melhor à bicicleta e evitar, por exemplo, ter a bag (caixa térmica) nas costas, adaptar um pouco melhor a bicicleta, reduzir a jornada de trabalho e necessidade de trabalhar tanto. Para transformar em benefício precisaria de uma ação coletiva de muitos atores envolvidos.

Rogério Viduedo – Mas se você fosse falar para um rapaz que hoje vai sair para fazer entrega. Que dica você daria para ele minimizar esses problemas que existem e que independe de outras pessoas? Coisas que só ele pode fazer?

Eduardo Rumenig de Souza – Prestar atenção na economia da bicicleta. Acho que é um fator importante. Então ficar atento aos ajustes pequenos ajustes, assim da bicicleta, seria importante para reduzir o risco de lesões por esforços repetitivos ou por uma jornada extensiva de trabalho. Prestar atenção na dieta. Então é priorizar alimentos antioxidantes, acho que seria importante também.

RV – O que seriam alimentos antioxidantes?

ERS – Os problemas que a gente aventou seria a exposição à poluição. Os ciclistas, em função da maior atividade respiratória e metabólica eles acabam inalando maior quantidade de poluentes. Isso não significa que eles sejam mais reativos aos poluentes. Mas eles inalam mais. Então, utilizar alimentos antioxidantes por exemplo, alimentos ricos em Vitamina E, Vitamina C, alimentos frescos, mais saudáveis, no geral, isso reduz os efeitos adversos promovidos pela poluição no organismo. Priorizar dietas que tenham alimentos mais frescos e crus, ricos em determinadas vitaminas como E e C, podem ajudar a reduzir esses essas internalidades negativas, por exemplo, da exposição à poluição. A hidratação acho que é importante. Foi algo que a gente notou, que os ciclistas evitam no geral, para ficar parando, que às vezes é difícil acessar um banheiro. Então aí, é a questão do desenho urbano e da oferta de serviços públicos que a Cidade de São Paulo não tem. E aí acaba obrigando os ciclistas a evitar certas coisas. Então, acho que hidratação, ergonomia e dieta seriam, individualmente, fatores que ajudariam a reduzir as internalidades negativas.

RV – Você sabe me dizer que alimentos, desses que a gente tem acesso básico, têm essas vitaminas? Ou bastaria por exemplo, se ele tomar um copo de água com limão, já ajuda para suprir a necessidade de vitamina C, e se comer feijão todo dia tem vitamina E?

ERS – Eu não sou especialista em nutrição. Eu sei que esses alimentos são os antioxidantes, mas por exemplo, alimentos frescos, por exemplo cenoura, eu sei que é rico em vitamina E. Por exemplo, sanduíche de queijo branco e uma cenoura. Mas se é suficiente aí eu já não saberia dizer.

RV – Vou perguntar para uma nutricionista que é mais adequado.  Eu tenho uma dúvida sobre a inalação de poluição. Existe como mitigar esse problema, diminuir o problema? Aproveitando que a gente passou dois anos usando máscara, se ciclista entregador usasse máscara, diminuiria o problema da poluição? E qual poluição que ele diminuiria?

ERS – Parece que a máscara, aí eu estou falando especificamente de partículas, que é a gente chama de material particulado, e não de gases. A máscara parece reduzir a exposição ao material particulado, mas teria que ser aquela que tem, por exemplo, filtro de carvão e que é muito difícil respirar. Então quando você está no exercício físico e você usa uma dessa, ou você reduz muito a intensidade do esforço para conseguir ficar com a máscara e conseguir dar conta de pedalar, ou você fatalmente vai tirar a máscara do rosto.

É muito difícil assim ele mitigar a exposição com iniciativas individuais. O que acontece é que a máscara, essa que a gente usa diariamente, ela aumenta a umidade e a temperatura do ar que a gente inala. Isso acaba reduzindo um pouco a irritação, por exemplo, em dias muito secos ou em dias muito frios. E aí acaba aumentando o conforto. Agora, para a poluição especificamente, me parece que seria muito difícil porque isso fatalmente implicaria em ele reduzir a velocidade com a qual ele pedala, o que obviamente implicaria nos ganhos dele.  Porque ele i teria que pedalar mais devagar, faria menos entregas e portanto ganharia menos.

RV – Então você significa que usar máscara pode ser uma alternativa para diminuir o desconforto na garganta na boca e nariz em dias muito secos?

ERS  – Pode ser uma alternativa porque o ambiente intra máscara fica um pouco mais úmido e isso ajuda a reduzir o desconforto que essas temperaturas secas, esses dias mais secos e as temperaturas muito baixas geram quando você está fazendo exercício; ajuda a diminuir o desconforto. Agora, em termos de poluição essas máscaras mais convencionais ajudam pouco.

RV – Você ficou a seis meses, né? Eu li uma boa parte da sua tese. Nos resultados que você colheu você conseguir identificar quais são os locais ou quais eram os locais mais poluídos e os horários?

ERS  – Os horários não porque eu sempre acompanhei os ciclistas no mesmo horário. Que era das 10 horas da manhã até às três da tarde. Eu fugi um pouco dos horários de pico mas, de novo como, era pandemia a cidade está vazia. Mas o que foi possível identificar é que tem três espaços urbanos e parece que são mais, tem maior concentração poluentes: Cruzamentos, então locais que têm semáforo e que o tempo semafórico é muito alto geralmente são locais que registram níveis elevados de poluição. Grandes avenidas com circulação de veículos pesados, por exemplo, Marginal ou mesmo ciclovias  que estão próximas a corredores de ônibus, também tem, e sobretudo perto de paradas de ônibus. Parada de ônibus têm um pico de poluição substantivo. E terminais rodoviários de ônibus. O terminal Bandeira por exemplo que era por onde a gente passava sempre, ali também registrava pico de poluição. Agora é importante dizer que o espaço é uma dimensão mas a prática espacial é outra.

Por exemplo, havia pontos em que a poluição não era tão grande mas o fato de exigir maior esforço acabava fazendo com que o ciclista inalasse muita poluição naquele lugar. Por exemplo subindo a Consolação. Então ali tem uma circulação de ônibus mas é basicamente de automóvel, que é o veículo que circula mais próximo da ciclovia. Mas como tem uma topografia é muito difícil e um desnível grande, então acaba fazendo com que ele aumente a frequência ventilatória e isso faz com que ele inale mais poluentes mesmo não sendo assim uma região com uma concentração igual a de um Terminal Bandeira.

Então é importante considerar o espaço mas também as práticas espaciais, sobretudo quando as pessoas estão fazendo exercício para saber onde estão os pontos críticos da cidade da cidade.

RV – Imagine que para uma pessoa normal ela nunca vai se dar conta e nem pensar nesse tipo de dinâmica. Tipo, hoje eu vou pegar a Consolação então eu vou usar a máscara, mas se usar máscara eu não consigo respirar direito, mas se eu ficar sem máscara eu vou respirar mais poluição. De alguma maneira, tem como evitar isso?

ERS – Dependeria de outros atores. Ele pode falar assim, vou adotar outra rota. Pode ser que diminua a concentração né? Ele vai por vias vicinais, mas ele também aumenta o tempo do trajeto, então pode ser que esse maior tempo de trajeto acaba resultando na mesma inalação de poluentes comparado com o trajeto mais curto que tem mais circulação de veículos. É muito difícil resolver isso em termos de exposição à poluição. Dependeria sobretudo do poder público. Se a gente pensar por exemplo as ciclovias.  Elas estão, uma boa parte delas, em fundos de vale.  Pensar na Sumaré, pensar na Berrini; fundos de vale que têm circulação de veículos a diesel pesados próxima dela. De ônibus sobretudo. Então, como faria para diminuir a exposição dos ciclistas. Eletrificar frota de ônibus. Essa seria uma iniciativa importantíssima, porque aí você tira o diesel e coloca o veículo de baixa emissão, que ainda tá emitindo partículas, por exemplo, pelo atrito dos pneus e freios, tudo bem, mas é muito menos e está deixando de emitir outros poluentes, são os gases. Para ele eletrificar a frota dependeria tanto da iniciativa privada quanto do poder público, de uma legislação que favorecesse, de uma infraestrutura também,  a gente vive uma crise energética. Depende de muitos fatores, é uma dinâmica muito complexa. O que não significa que não é possível resolver. É possível. Tem tecnologia, mas exige um investimento, exige boa vontade desses diferentes atores e principalmente exige articulação e organização, que acho, que é o que falta muito ainda dessas peças iniciativas todas.

RV – Agora, sobre os resultados da sua pesquisa. Tem algum resultado que você quantificou em relação àquelas pessoas aqueles rapazes que faziam as entregas em relação à exposição à poluição?

ERS –  Tem.  A gente quantificou o risco relativo de mortalidade em função da exposição à poluição. E essa é a boa notícia. A gente detectou que, o mesmo trabalhando jornadas extensivas na cidade de São Paulo que é uma cidade bastante poluída, o risco de mortalidade em função da poluição especificamente de material particulado, ele é menor do que o risco de permanecer sedentário. Ou seja, é melhor pedalar mesmo em local poluído do que permanecer sedentário. Agora, de novo: eu fiz isso durante a pandemia, que tinha tráfego muito baixo de veículos, taxa de congestionamentos baixíssimas. Era um cenário muito específico, de uma cidade quase sem automóvel. Eu não sei como isso seria hoje em dia, com os congestionamentos, é possível que talvez desse outro resultado.  Mas o que a gente verificou durante a pandemia como é que o risco relativo de mortalidade era menor, e aí por que? Acho que eu consigo explicar melhor. Porque o exercício físico, os benefícios que ele promove, é melhorar os processos antioxidantes do organismo.

Por exemplo, um indivíduo que faz atividade física teoricamente, isso ainda não é muito bem comprovado, ele seria menos reativo à poluição, porque uma das adaptações que o exercício físico aeróbio, que o esforço físico gera, é tornar a pessoa menos reativa a inflamações, a processos inflamatórios. O que está associado a uma série de coisas. Está associado a câncer, está associado a lesões, ou está associada a um monte de problemas. Parece que isso funciona para os ciclistas. De modo que é melhor pedalar mesmo nesse ambiente, considerando que era um ambiente de pandemia e hoje eu não sei se essa afirmação é possível sustentar, do que permanecer sedentário. Mas isso em termos de poluição, e não em qualidade de vida no geral. Porque aí envolve outros fatores que não só a questão biológica.

RV – Você acompanhou diferentes tipos de empregadores. O que mais chamou atenção? Ou melhor: o que poderia ter chamado a atenção em relação a esses que trabalham só para essas empresas de aplicativos?

ERS – Tem uma diferença importante. E eu acho que o Ifood especificamente ele passou a entender, durante a pandemia eu acho que ele ficou mais sensível à essa questão. O Ifood especificamente, e eu estou falando dele porque detém quase setenta por cento do mercado de entregas nem São Paulo, então ele é um ator importante. Durante o período que eu pedalei esses ciclistas às vezes não tinham acesso a quase nada. Não tinha um ponto de apoio onde tivesse banheiro, local para ficar durante o tempo disponível de trabalho, local para carregar o telefone, para comer. E o Ifood, com uma iniciativa chamada Ifood pedal, ele tentou atender um pouco às reivindicações desses ciclistas. Ele colocou quatro pontos da cidade de São Paulo.  E o problema, acho que agora, é a escala disso. Uma das coisas que acontece é que o ciclista que é operador logístico, ele não pode sair do território determinado pela plataforma. Então, se esse ponto (do Ifood) está fora do território o ciclista não tem acesso. E como está em regiões muito contíguas, Cerqueira César, Itaim, enfim, deixa muito ciclista de fora. Pra ser significativa acho que teria que ampliar a escala dessa iniciativa. Mas acho que essa é uma diferença.

Os ciclistas que trabalhavam para empresas que não eram plataformas eles tinham local para descansar, para comer, para usar banheiro, enfim. E os da plataforma não. O tempo inteiro na rua. Eu acho que esse é um ponto. A segunda coisa é em relação à previsibilidade. Os ciclistas, e eu acho que esse é um fator importante, os ciclistas que trabalhavam pro varejo, para os varejistas, eles sabiam o quanto eles iam ganhar ou tinha uma previsão. “Ó, amanhã vocês têm ou vão fazer tantas entregas”, e conseguem programar a rotina e conseguem saber qual vai ser a renda dele no fim semana.

Os ciclistas das plataformas não tem essa previsibilidade e isso é um fator de ansiedade. E, de novo, eu não consigo dizer exatamente, mas a percepção que eu tive é que isso gera alguma ansiedade e isso obviamente tem consequências para a saúde mental dos ciclistas, eu imagino. É um ambiente extremamente imprevisível e isso gera uma ansiedade. O terceiro ponto é o fato de você ter que interagir o tempo inteiro com o algoritmo. Os ciclistas do varejo tinham alguém para conversar, um superior, então, quando tinha um problema era mais fácil tentar explicar e tentar resolver a situação com um superior enquanto que o que os ciclistas de plataforma é sempre com o algoritmo, tem uma assimetria de informações. A plataforma detém toda a informação e o ciclista fica um pouco no escuro e não sabe como é que aquilo está processando.

E por último tem uma coisa que é a imunização da plataforma que não se responsabiliza por quase nada que acontece com ciclistas, enquanto que o setor do varejo, embora os ciclistas também sejam o microempreendedores, têm uma certa flexibilidade e uma certa corresponsabilidade no trabalho de entregas. Então acho que são esses pontos assim que basicamente me chamaram a atenção comparando os ciclistas que trabalham para o varejo com ciclistas que trabalham para as plataformas.

RV  – A pessoa que começa a trabalhar com plataforma precisa dominar a ansiedade de querer ganhar logo um dinheiro, porque ela não vai conseguir; ela tem que saber que é um trabalho imprevisível, e que vai interagir só com o algoritmos. Ela está sozinha então?

ERS – A lógica é um pouco essa. É uma sociedade indivíduos, se fosse traduzir. O algoritmo tem um desenho que eu até entendo, assim, o argumento das plataformas, o que alguns autores chamam de gameficação do trabalho. Acontece é que eles usam a lógica dos jogos para estimular os entregadores a aumentar a eficiência, aumentar o engajamento, o comprometimento desses ciclistas com o trabalho. Em tese seria positivo né? Se a gente for pensar; bom a pessoa fica auto motivada, engaja mais, é mais eficiente; não tem problema nenhum. A questão é que tem consequências. Uma delas é essa que você citou. Você forma pessoas que estão competindo o tempo inteiro umas com as outras e isso eventualmente pode representar o enfraquecimento dos laços de solidariedade que havia, por exemplo, no trabalho formal, quando a pessoa se identificava com uma classe, por exemplo os metalúrgicos e bancários. Tinha laços de solidariedade que fazia daquele grupo de pessoas em função do modo como elas se inserem no mundo produtivo, parte de uma mesma classe. Nas plataformas não.

É um grupo muito heterogêneo e essa lógica meritocrática ela tem peso importante. A pessoa se torna o indivíduo competindo com outros indivíduos, que inclusive precisa vender a si mesmo. Esse sistema de ranqueamento que as plataformas usam, por exemplo o Rappi, esse sistema de ranqueamento faz com que essas pessoas fiquem em competição umas com as outras como se fosse um jogo. Dependendo do critério que as plataformas adotam para classificar esses ciclistas, inclusive, estimula o risco. Por exemplo, quanto mais rápido você entrega mais pontos você ganha. A pessoa de deixar de respeitar o farol, vai pegar a mão contrária da via, vai aumentar a velocidade para conseguir melhor classificação, porque quanto melhor sua classificação mais pedido você recebe.

Tem uma situação que é um pouco paradoxal, por um lado as plataformas oferecem, por exemplo, curso de capacitação dos ciclistas de segurança viária, mas por outro, adotam um desenho de algoritmo que estimula o risco. Porque classifica os ciclistas em função de tais critérios que fazem com que eles adotem, por exemplo, maiores velocidades, desrespeito às legislações de trânsito, uma série de coisas. Qual que é alegação das plataformas? É que se eles não adotam isso, por exemplo, ciclista ou motociclista que vai entregar em dia chuvoso, seria injusto se ele não recebesse um pouco mais do que um dia em que ele tá entregando que não tem chuva quando o risco de uma de um sinistro de trânsito é menor. O argumento da plataforma em tese faz sentido, e também é preciso considerar que esse desenho tem riscos.

Portanto, redefinir o algoritmo, por exemplo, para incluir o ciclista que respeita a lei de trânsito e não adota a mão contrária mesmo que implique em maior tempo de entrega ou que use o tempo disponível ao trabalho para fazer um curso de capacitação, ou de formação profissional para inclusive ser incluído num quadro que exige mais qualificação dentro da própria plataforma, como curso de programação, ou que adota práticas saudáveis durante o tempo que está disponível ao trabalho. Como exemplo, eu fico pensando em incluir isso por exemplo, no algoritmo e ranquear o ciclista por outros critérios que não só esse da eficiência talvez mitigasse um pouco essa lógica um pouco perversa.

RV – Você está querendo que as plataformas sejam ESG, sustentáveis, que tenham uma governança em sustentabilidade?

ERS – Poderiam sim né? Por exemplo incluir certas iniciativas, desenvolvidas pelos próprios ciclistas, que aí contraria um pouco que eu disse, que é enquanto as plataformas têm um desenho que privilegia a individualidade e a competição e até a virilidade, tipo “olha eu vou mais rápido, eu suporto trabalhar mais tempo”ou enfim, os próprios ciclistas desenvolvem formas de relação e às vezes usam as próprias redes sociais, o WhatsApp, essas tecnologias de comunicação e de informação para construir laços de solidariedade. Por exemplo, indicar para os outros ciclistas a melhor rota, ou indicar a melhor

rota porque ali tá tendo muita incidência de roubo, furto, ou identificar o local que oferece água, que permite usar banheiro, ou que é mais barato, ou que vende alimentos que eles podem consumir, o que faz com que eles economizem no custo da alimentação e da produção do trabalho. Eles criam informalmente laços de solidariedade.

As plataformas por exemplo poderiam incorporar essas iniciativas e mapear essas redes de apoio e inclusive dar um suporte para esses restaurantes oferecendo descontos do repasse que eles precisam fazer para plataformas por cada pedido e tornar esses espaços polos para que os ciclistas também sejam acolhidos dentro dos próprios territórios onde eles atuam. Ao invés do Ifood Pedal distribuir pontos por toda a cidade poderia usar uma rede que já existe e oferecer algum tipo de suporte a essa rede. De novo, os OLs (operador logístico) não podem sair daquele espaço delimitado e os pontos do Ifood ainda são muito limitados. Então seria uma forma de ampliar rapidamente e atender a necessidade desses atores eu imagino.

RV – Nesse tempo em que você os acompanhou por seis meses você viu alguma solução que algum ciclista tenha dado para algum problema que você achava que poderia não haver solução ou coisa assim? Como é a criatividade deles?ERS – Essa é ilimitada. Isso é uma coisa impressionante. A gente chamou de agência na tese. A agência desse ciclistas é algo assim extraordinária. Para você suportar uma rotina de 12 horas diárias… Eu por exemplo conheci um ciclista que, pela métrica dele, coloquei um Polar (medidor cardíaco e de distância) e monitorei a atividade durante as quatro horas e aí assumi que isso acontecia nos outros dois turnos em que ele trabalhava. Somando tudo é como se ele viesse de Cubatão a São Paulo todos os dias, porque ele trabalhava na região da Paulista e às vezes tem que descer e subir e fazer isso muitas vezes. Então somados dá um desnível muito grande. Esses ciclistas suportam, mas como suporta isso? É pela agência né?

Então recorre aos energéticos, a maneira de pedalar, a maneira como ele se comporta na bicicleta. Estrategicamente ele escolhe às vezes as entregas, para evitar que ele tenha que subir ou descer muitas vezes ele acaba agenciando as entregas. Outra coisa muito curiosa é que quando ciclistas estão em situação financeira precária eles acabam recorrendo a outros ciclistas e aí eles acabam ajudando com dinheiro, com alguns empréstimos pequenos, eles usam e tentam criar elaborar textos e mandar para os clientes para tentar angariar um pouco mais de gorjetas, então eles usam a criatividade para escrever, tem uma solidariedade que eles constroem com os restaurantes e os estabelecimentos onde eles vão pegar a comida.

Alguns restaurantes oferecem lanches para esses ciclistas de maneira gratuita. Uma churrascaria, por exemplo, sempre que o ciclista vai lá pega oque sobra do corte da Carne, e tá excelente assim, coloca no pão, tem essas pequenas agências eu acho. Eu conheci um ciclista por exemplo que cedeu uma bicicleta elétrica que ele alugava para outro ciclista estava com muita dificuldade de suportar a rotina de trabalho. Eu acho que essas pequenas agências assim, o uso das tecnologias para facilitar a rotina diária de trabalho. Então acho que para resumir, acho que a criatividade desses ciclistas, o que é positivo tá na empatia que eles desenvolvem com os outros ciclistas e que às vezes inclusive usam as próprias tecnologias para exercê-lo.

RV –  Eu li que você identificou que mesmo as bicicletas elétricas podem não ser muito boas, porque não tem uma regulagem boa, é isso? Apesar de ser elétricas as pessoas tem que tomar cuidado para não ter um problema ergonômico né?

ERS – É difícil dizer porque como a gente acompanhou o ciclistas em prazo muito curto e esse problema geralmente vem no longo prazo é difícil dizer se de fato isso causaria problema aos ciclistas.Mas é muito provável que sim. O que acontece com as elétricas diferentemente das bicicletas mais usuais é que elas não têm assim uma grande variedade em termos de tamanho de quadro, de possibilidade de ajuste, são bicicletas padrão que geralmente é um banco e só não tem como ajustar e uma das pessoas que eu acompanhei que usava essa bicicleta elétrica era ex-jogador de basquete então ele tinha quase 1,90, então mesmo o banco que é uma regulagem simples, que para evitar por exemplo lesões no joelho você deveria deixar no ângulo que for 170 ou 175 graus, com a perna quase estendida completamente, na bicicleta elétrica ele não consegue porque tem uma limitação de ajuste.

Por exemplo, com esse com essa regulagem, quanto maior a flexão maior a sobrecarga patelar. Essa articulação que fica atrás da patela, quanto maior a flexão, maior a sobrecarga. E, no longo prazo, pode eventualmente acontecer mas, de novo, a gente não tem como afirmar, por exemplo, uma condromalácia, uma condropatia, que é um desgaste dessa peça cartilagem que fica sob a patela. A bicicleta elétrica tem essa limitação, porém, aí de novo, é a vantagem; exige menos esforço. Então, pode ser que o fato de exigir menos esforço compense essa dificuldade de regulagem. Portanto é muito difícil dizer se isso de fato causa problemas. Mas o que eu consigo dizer é que os ajustes são mais limitados e que isso compromete a ergonomia dos ciclistas.

RV – Se você fosse começar a fazer entregas hoje, o que você não deixaria de ter? Você teria uma bicicleta elétrica?

ERS – Acho que sim. Seria algo algo importante, talvez uma bicicleta assistida que  precisasse pedalar mas que o motor elétrico me ajudasse a reduzir o esforço diário. Óculos e capacete são fundamentais e todo ciclista precisaria usar pois são itens de segurança imprescindíveis. Se não dependesse do indivíduo, outros atores, poder público melhorando as condições urbanas, as plataformas melhorando as condições de trabalho,

RV -Maravilha. Adorei as explicações.

Eu tenho acompanhado. Agora tenho feito uma revisão do que saiu de 2019 a 2022 sobre as plataformas, tanto nos jornais de grande circulação, quanto em institutos de pesquisa, em artigos acadêmicos. Eu ainda não li os artigos, e terminei os jornais e os institutos de pesquisa. E uma das coisas que me chamou a atenção que eu não conhecia na época do trabalho foi uma pesquisa feita pela Universidade de Oxford, o relatório chamado Fair Work no Brasil e eles fazem esse trabalho em vários lugares do mundo e eles atribuem notas os aplicativos em função de cinco critérios acho, que é renda, gestão, transparência, condições de trabalho e ai eu percebi que é possível de fato melhorar as condições desses ciclistas, e acho que eu era muito crítico, mas o trabalho de plataforma de fato tem algumas vantagens. Você consegue compor a jornada de trabalho, têm mais flexibilidade, o ingresso no mercado de trabalho é menos burocrático e tem uma série de vantagens. O problema é que me parece que no Brasil as plataformas um pouco se aproveitam dessa precariedade estrutural histórica; desemprego, subocupação e renda média muito baixa para amplificar esse sistema de exploração. Enquanto em outros lugares do mundo, por exemplo Alemanha e Reino Unido, o trabalho de plataforma ele é bem melhor. Ele oferece melhores condições. E aí eu acho que de novo dependeria do estado para fazer isso né? Colocasse uma legislação que regulasse melhor as condições de trabalho e oferecesse melhores condições aos ciclistas.

#jb


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